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Sobre o batismo de desejo e a ignorância invencível

Visto o mal uso que se faz dos conceitos "Batismo de desejo" e "ignorância invencível", de uma parte por modernistas imersos num laxismo liberal, e de outra parte por rigoristas que lembram os jansenistas, faz-se necessário recorrer, como pede a prudência católica, ao ensinamento do Magistério da Igreja no que trata destas matérias. Vejamos então alguns textos encontrados [todos os destaques são meus]:


SOBRE O BATISMO DE DESEJO


INOCÊNCIO III, data incerta, Carta Apostolicam Sedem:

O presbítero do qual comunicaste que terminou seus dias sem o banho do batismo, foi libertado do pecado original e chegou ao gozo da pátria celestial, assim declaramos sem hesitar, porque perseverou na fé da santa mãe Igreja e na confissão do nome de Cristo. Podes ler, outrossim, o livro oitavo de Agostinho, De civitate Dei, onde se lê, entre outras coisas: “O batismo é administrado de modo invisível àquele que não o desprezo da religião, mas a barreira da necessidade exclui”. Vale reler também o livro do bem-aventurado Ambrósio, De obitu Valentiniani, que sustenta a mesma coisa. Caladas as disputas, guarda firmemente as sentenças dos doutos Padres e na tua Igreja ordena que sejam oferecidas contínuas orações e sacrifícios pelo presbítero recordado. (Dz. 741)

Comentário: Como se vê, 1) o presbítero foi batizado tendo fé na Igreja e confessando o nome de Jesus Cristo; não tendo sido portanto batizado explicitamente (banho do batismo), foi batizado pelo desejo de pertencer à Igreja; 2) o relato de Santo Agostinho implica o Batismo de desejo (de modo invisível), visto a impossibilidade de receber o sacramento visível.


INOCÊNCIO III, 1206, Carta Debitum officii pontificalis:

Com a tua carta nos fizeste sabiamente saber que certo judeu, chegando à iminência da morte, dado que vivia somente entre judeus, imergiu a si mesmo na água dizendo: “Eu me batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Agora então perguntas se o mesmo judeu, que persevera na devoção da fé cristã, deva ser batizado. Nós respondemos assim à tua fraternidade: dado que entre aquele que batiza e aquele que é batizado deve haver uma distinção, como se vê claramente pelas palavras do Senhor que diz aos apóstolos: “Batizai todas as gentes em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” [Mt 28,19], o judeu acima mencionado deve ser batizado de novo por outrem, para que seja evidenciado que um é quem é batizado e outro quem batiza. Todavia se este tal tivesse morrido logo depois, teria ido diretamente para a pátria, pela fé do sacramento, ainda que não pelo sacramento da fé. (Dz 788)

Comentário: Entende-se então que o judeu batizou-se a si mesmo, o que nos termos do sacramento o tornaria inválido. Porém, a fé [que implica necessariamente o desejo] neste mesmo sacramento o teria validado, in articulo mortis (circunstância em que se dá o Batismo de desejo), unindo o batizado não ao Corpo visível, mas ao Corpo invisível ou à Alma da Igreja.


CONCÍLIO DE TRENTO, 1547, Sessão 6ª, Decreto sobre a justificação, Cap. 4:

Com estas palavras se esboça uma descrição da justificação do ímpio: é a passagem do estado no qual o homem nasce filho do primeiro Adão, ao estado de graça e “de adoção dos filhos de Deus” [Rm 8,15], por meio do segundo Adão, Jesus Cristo nosso Salvador; esta passagem, depois do anúncio do Evangelho, não pode acontecer sem o banho da regeneração [cân. 5 sobre o batismo] ou sem o desejo dele, como está escrito: “Se alguém não renascer da água e do Espírito Santo, não poderá entrar no reino de Deus” [Jo 3,5]. (Dz 1524)

Comentário: Como se vê, o sacrossanto Concílio de Trento definiu literalmente o Batismo de desejo como uma possibilidade de justificação [salvação].


CONCÍLIO DE TRENTO, 1547, Sessão 7ª, Decreto sobre os sacramentos, Cân. 4:

Se alguém disser que os sacramentos da Nova Lei não são necessários à salvação, mas são supérfluos, e que, sem eles ou sem o desejo de os receber, os homens obtêm de Deus, pela fé só, a graça da justificação, embora nem todos <os sacramentos> sejam necessários a todos: seja anátema. (Dz. 1604)

Comentário: Aqui novamente a partícula "ou" [que na lógica cumpre função disjuntiva] remete à realidade do desejo de receber os sacramentos da Igreja, obtendo deles os mesmos efeitos que se obteria se recebidos explicitamente. Poder-se-ia dizer, contudo, que nem todos os sacramentos podem ser obtidos por desejo (é o caso do sacramento da Ordem, por exemplo). É verdade. O texto, apesar de dizer "os sacramentos" de forma geral, não parece o fazer quando introduz, pelo "ou", a possibilidade do desejo; nesse caso, é praticamente certo dizer que o texto se refere àqueles sacramentos que justamente podem ser obtidos implicitamente, a saber, o sacramento do Batismo, como fora afirmado anteriormente por este mesmo Concílio, o sacramento da Eucaristia, pela comunhão espiritual, e o sacramento da Penitência, pela contrição perfeita.


CONCÍLIO DE TRENTO, 1551, Sessão 13ª, Decreto sobre o sacramento da Eucaristia, Cap. 8:

Quanto ao uso, nossos Pais distinguiram reta e sabiamente três modos de receber este sacramento [Eucaristia]. Eles ensinam que alguns só o recebem sacramentalmente: são os pecadores; outros só espiritualmente: são aqueles que, comendo em desejo aquele pão celeste que lhes é oferecido, com a fé viva “que opera pelo amor” [Gl 5,6], sentem seu fruto e utilidade; outros ainda recebem-no ao mesmo tempo sacramental e espiritualmente [cân. 8]: são os que se examinam e preparam de tal modo que, vestidos com a veste nupcial [cf. Mt 22,11ss], se aproximam desta mesa divina. (Dz. 1648)

Comentário: Percebe-se portanto que existem possibilidades distintas de se receber o sacramento da Eucaristia, sendo uma delas o desejo implícito de comer o pão celeste. Isto serve para reforçar a realidade do Batismo de desejo, o qual se opera pelo mesmo meio da comunhão espiritual: a "fé viva que opera pelo amor".


CONCÍLIO DE TRENTO, 1562, Sessão 22ª Doutrina e cânones sobre o sacrifício da Missa, Cap. 6:

O sacrossanto Sínodo desejaria certamente que os fiéis presentes a cada Missa comungassem não só em desejo espiritual, mas também pela recepção sacramental da Eucaristia, com o que chegariam a eles mais abundantemente os frutos deste santíssimo sacrifício. Mas nem por isso, se tal não sempre acontece, condena como privadas e ilícitas aquelas missas em que só o sacerdote comunga sacramentalmente [cân. 8], ao contrário, as aprova e recomenda. Também estas missas devem ser consideradas verdadeiramente públicas, em parte porque o povo nelas comunga espiritualmente, em parte porque são celebradas por um ministro público da Igreja, não só por si, mas por todos os fiéis que pertencem ao corpo de Cristo. (1747)

Comentário: Como se vê, o texto cita o "desejo espiritual" como uma realidade da recepção do Santíssimo Sacramento, ainda que em menor abundância dos frutos recebidos. Este desejo espiritual mais uma vez depõe a favor do Batismo de desejo, pois este desejo implícito parte da mesma vontade de pertencer a Deus, seja o convidando para entrar em "nossa morada" [Mt 8,8] pela Eucaristia, seja participando do seu Corpo Místico pelo Batismo.


PIO V, 1566, Catecismo Romano [do Concílio de Trento]:

N.136. Será o Batismo absolutamente necessário para a eterna salvação? O Batismo é de absoluta necessidade para os infantes, que o devem receber de fato. Assim sempre se fez na Igreja Católica, desde os tempos primitivos. Os adultos devem também batizar-se; mas, se não puderem receber o Batismo real e sacramentalmente, conseguem a justificação mediante a contrição perfeita, acompanhada do desejo de batizar-se, ou então mediante o sacrifício da própria vida pela fé em Jesus Cristo.

Comentário: É claríssimo aqui que o Catecismo tridentino expõe a possibilidade não só do batismo de desejo, mas também do batismo de sangue, que ocorre naquele que, mesmo não sendo batizado sacramentalmente, sofre martírio pela fé católica.


PIO V, 1567, Bula Ex omnibus afflictionibus:

Pela contrição, mesmo perfeita por força da caridade e unida ao desejo de receber o sacramento, não é perdoado o pecado, sem a recepção atual do sacramento – exceto em caso de necessidade ou martírio. (Dz. 1971)

Comentário: Daí decorre que o desejo por si mesmo não é suficiente para que se receba o sacramento [no caso em questão, o sacramento da Penitência]. Para tanto é necessário que também haja a necessidade ou o martírio. Analogamente, sabemos que o Batismo de desejo não é desvinculado da necessidade, quando as circunstâncias impedem o Batismo sacramental e a pessoa se encontra no estado de morte iminente [ver novamente II CONCÍLIO DE LATRÃO, Carta Apostolicam Sedem].


PIO X, 1905, Catecismo Maior:

N. 170. Mas quem se encontrasse, sem culpa sua, fora da Igreja, poderia salvar-se? Quem, encontrando-se sem culpa sua - quer dizer, em boa fé - fora da Igreja, tivesse recebido o batismo, ou tivesse desejo, ao menos implícito, de o receber e além disso procurasse sinceramente a verdade, e cumprisse a vontade de Deus o melhor que pudesse, ainda que separado do corpo da Igreja, estaria unido à alma d’Ela, e portanto no caminho da salvação.

N. 565. Pode suprir-se de algum modo a falta do Batismo? A falta do Batismo pode supri-la o martírio, que se chama Batismo de sangue, ou um ato de amor perfeito de Deus, ou de contrição, junto com o desejo, ao menos implícito, do Batismo, e este ato chama-se Batismo de desejo.

Comentário: Fica claríssimo que o Batismo de desejo é ensinado categoricamente por São Pio X.


PIO XII, 1943, Encíclica Mystici Corporis:

[São convidados aqueles] que não pertencem à contextura visível da Igreja católica, para que procurem sair de um estado em que não podem estar seguros de sua eterna salvação, pois, embora por certo desejo e voto inconsciente estejam ordenados ao Corpo místico do Redentor, carecem de tantas e tão grandes graças e auxílios celestes dos quais só na Igreja católica podem fruir. Entrem, pois, na unidade católica, e na única contextura do Corpo de Jesus Cristo, acorram todos conosco à única Cabeça, na comunhão de uma caridade gloriosíssima. (Dz 3821)

Comentário: Como se vê, Pio XII não exclui da salvação eterna aqueles que possuem o desejo e voto, mesmo inconsciente, de pertencer ao Corpo de Cristo, apesar de ressalvar que estes não podem receber todas as graças e auxílios celestes da Santa Igreja.


PIO XII, 1949, Carta do S. Ofício ao arcebispo de Boston:

Na sua infinita misericórdia, Deus quis que os efeitos necessários para a salvação provenientes destes meios de salvação – que somente por instituição divina, mas não por necessidade intrínseca, são ordenados para o fim último do ser humano – possam também ser obtidos, em certas circunstâncias, quando estes meios são acionados só pelo voto ou desejo. É o que vemos claramente expresso no sacrossanto Concílio de Trento tanto a respeito do sacramento da regeneração como a respeito do sacramento da penitência. (Dz. 3869)

Ora, deve-se dizer o mesmo, em seu próprio nível, quanto à Igreja, enquanto meio geral de salvação. Pois para que alguém obtenha a salvação eterna não é sempre necessário que seja efetivamente incorporado à Igreja como membro, mas requerido é que lhe esteja unido por voto e desejo. Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é aquele dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar sua vontade à vontade de Deus. (Dz. 3870)

Por estas providentes palavras, ele condena tanto aqueles que excluem da salvação eterna quantos estão unidos à Igreja só por um voto implícito, como também aqueles que, erroneamente, afirmam que os homens podem ser salvos de modo igual em qualquer religião. Nem deve-se pensar que para ser salvo baste qualquer tipo de desejo de entrar na Igreja. Pois é necessário que o voto que destina alguém para a Igreja seja animado pela caridade perfeita. O voto implícito só pode ter efeito quando o homem tem a fé sobrenatural. (Dz. 3872)

Comentário: Bem claro fica que, na altura do ano de 1949, sob o papado de Pio XII e ainda onze anos antes do Concílio Vaticano II, a Igreja cria e ensinava sobre o Batismo de desejo, e, indo além, condenava certos rigoristas que interpretavam o dogma "Extra Ecclesiae nulla salus" de forma herética.


SOBRE A IGNORÂNCIA INVENCÍVEL


INOCÊNCIO II, 1140, Sínodo de Sens: Erros de Pedro Abelardo:

Não têm pecado aqueles que, sem o saberem, crucificaram o Cristo. (Dz. 729)

Não se deve atribuir culpa a qualquer coisa feita por ignorância. (Dz. 730)

Comentário: Note-se que, em primeiro lugar, a Igreja condena o uso indiscriminado do conceito de ignorância para isentar de culpa aqueles que incorrem em certo tipo de ignorância culposa [o que é, de minha opinião, a maioria dos casos, e é também de onde se vê a aplicação imensamente hiperbólica deste conceito, isentando de culpa todos os que rejeitam conscientemente e até maliciosamente as verdades ensinadas pela Igreja Católica].


CONCÍLIO DE TRENTO, 1551, Sessão 14ª, Doutrina sobre o sacramento da Penitência, Cap. 8:

E, realmente, a razão da justiça divina parece requerer que os que por ignorância pecaram antes do batismo recebam do Senhor a graça de outro modo que os que, uma vez libertos da escravidão do pecado e do demônio e tendo recebido o dom do Espírito Santo, cientes do que fazem, não recearam de violar o templo de Deus [cf. 1Co 3,17] e contristar o Espírito Santo [cf. Ef 4,30]. (Dz. 1690)

Comentário: O texto diz que, de certa forma, os que padecem de ignorância recebem a graça de modo especial [e aqui não inferimos se esta graça é maior ou menor que a graça dos batizados e confirmados na fé, mas apenas uma graça "de outro modo", como diz o texto]. O texto também diz que o pecado daqueles que receberam o dom do Espírito Santo (e portanto estão cientes da Revelação) é mais grave que o daqueles que não receberam tais dádivas. Isto implica diretamente que a ignorância invencível seja considerada perante a justiça divina. Como ensina São Paulo: "Se, portanto, o incircunciso observa os preceitos da lei, não será ele considerado como circunciso, apesar de sua incircuncisão?" [Rm 2,26].


PIO V, 1567, Bula Ex omnibus afflictionibus:

A falta de fé puramente negativa, <que existe> naqueles aos quais Cristo não foi pregado, é pecado. (Dz. 1968)

A justificação do ímpio se dá, formalmente, pela obediência à lei e não por oculta comunicação e inspiração da graça que faça os por ela justificados cumprirem a lei. (Dz. 1969)

Comentário: Vê-se que 1) a falta de fé puramente negativa, ou seja, aquela que decorre da pura negação de tudo aquilo que levaria à fé, é pecaminosa. Da-se a entender portanto que o caso contrário, a saber, a falta de fé não culposa, que vem não da negação mas da ignorância, de si mesma não é pecado; 2) o primeiro movimento do ímpio em direção a justificação é o cumprimento da lei [natural], que é por outras palavras a escolha ou o desejo de fazer a vontade de Deus.


ALEXANDRE VIII, 1690, Decreto do S. Ofício, Erros dos jansenistas:

Ainda que haja ignorância invencível do direito natural, esta, no estado da natureza decaída, não justifica por si mesma do pecado formal [material] o operante. (Dz. 2302)

Comentário: Entre os erros dos jansenistas condenados pelo Santo Ofício, está justamente o erro do rigorismo que diz que, mesmo em ignorância invencível do direito natural, o que opera o pecado não pode ser justificado.


PIO IX, 1863, Encíclica Quanto conficiamur moerore:

Convém novamente recordar e repreender o gravíssimo erro, no qual se encontram lamentavelmente diversos católicos, que pensam que chegarão à vida eterna as pessoas que vivem nos erros e afastadas da verdadeira fé e da unidade católica. Essa <opinião> é decididamente contrária à doutrina católica. É conhecido por Nós e por vós que aqueles que ignoram invencivelmente a nossa santíssima religião e observam diligentemente a lei natural e os seus preceitos – impressos por Deus no coração de todos – e que, dispostos a obedecer a Deus, conduzem uma vida honesta e reta, podem com o auxílio da luz e graça divina conseguir a vida eterna, já que Deus, que perfeitamente vê, escuta e conhece as mentes, as almas, os pensamentos e o comportamento de todos, de modo algum permite, por sua suma bondade e clemência, que seja punido com eternos suplícios quem não é réu de culpa voluntária. Mas é também conhecidíssimo o dogma católico, a saber, que ninguém pode se salvar fora da Igreja católica e que não podem obter a salvação eterna aqueles que são obstinadamente contumazes para com a autoridade e as definições da mesma Igreja, bem como aqueles que são separados da unidade da mesma Igreja e do Romano Pontífice, sucessor de Pedro, a quem foi confiada pelo Salvador a guarda da vinha. (Dz. 2865)

Comentário: Como se vê, os que possuem ignorância invencível em relação a religião da Igreja podem se salvar cumprindo os preceitos da lei natural; porém tal realidade não é aplicável aqueles que ignoram a santa religião católica com obstinação culposa, pois neste caso estamos tratando de uma ignorância vencível ou mesmo de malícia consciente.


PIO IX, 1855, Instrução do S. Ofício ao vigário apostólico do Sião:

É preciso também considerar, quanto aos impedimentos dirimentes, que a ignorância invencível ou a boa fé não são suficientes para contrair um matrimônio válido. Também se alguma vez aquela ignorância e boa fé valem para escusar do pecado (o que, porém, raramente se deve crer na prática), jamais poderão tornar válido um matrimônio que foi contraído com impedimento dirimente. (Dz. 2820)

Comentário: É bastante interessante a distinção que se faz aqui: a ignorância invencível, apesar de valer para escusar o pecado [e isso mais uma vez confirma a tese da ignorância invencível], não vale para o processo matrimonial.


PIO IX, 1864, Syllabus, erro n.17:

Pelo menos se deve ter boa esperança quanto à eterna salvação de todos os que não se encontram de algum modo na verdadeira Igreja de Cristo. (Dz. 2917)

Comentário: Deste erro condenado por Pio IX aprendemos duas coisas: 1) Não se deve ter boa esperança de salvação aqueles que estão fora da Igreja. Por boa esperança entendemos que há, contudo, alguma esperança, pois senão teria ensinado Pio IX que não se deve ter nenhuma esperança; 2) O termo "de algum modo" diz diretamente que há mais de um modo de se pertencer à Igreja, e parece se referir justamente aos que não estão explicitamente incluídos nela, como é o caso dos que padecem de ignorância invencível e não o poderiam estar de fato, mas que, como dito na Encíclica Quanto conficiamur moerore, podem obter a salvação eterna, e portanto estarem unidos à Igreja, pois que não há salvação fora dela.


PIO XII, 1949, Carta do S. Ofício ao arcebispo de Boston:

Entre as coisas que a Igreja sempre pregou e nunca deixará de pregar está também a afirmação infalível que nos ensina que “fora da Igreja não há salvação”. Este dogma, porém, deve ser entendido no sentido em que a própria Igreja o entende. Com efeito, não é ao juízo privado que nosso Salvador confiou a explicação do que está contido no depósito da fé, mas ao magistério eclesiástico. (Dz. 3866)

Primeiro, a Igreja ensina que nesta matéria se trata de um preceito muito severo de Jesus Cristo. Com efeito, ele impôs aos seus Apóstolos que ensinassem todas as nações a observarem tudo quanto ele havia mandado. Entre os mandamentos de Cristo não ocupa o último lugar aquele que ordena sermos pelo batismo incorporados ao corpo de Cristo, que é a Igreja, e de permanecer unidos a Cristo e a seu vigário, pelo qual ele mesmo governa de modo visível sua Igreja na terra. Por isso, ninguém será salvo se, sabendo que a Igreja foi divinamente instituída por Cristo, todavia não aceita submeter-se à Igreja ou recusa obediência ao Romano Pontífice, vigário de Cristo na terra. (Dz. 3867)

Ora, o Salvador não apenas ordenou que todas as nações entrassem na Igreja, mas ainda decidiu que a Igreja seria o meio de salvação sem o qual ninguém pode entrar no reino celeste. (Dz. 3868)

Na sua infinita misericórdia, Deus quis que os efeitos necessários para a salvação provenientes destes meios de salvação – que somente por instituição divina, mas não por necessidade intrínseca, são ordenados para o fim último do ser humano – possam também ser obtidos, em certas circunstâncias, quando estes meios são acionados só pelo voto ou desejo. É o que vemos claramente expresso no sacrossanto Concílio de Trento tanto a respeito do sacramento da regeneração como a respeito do sacramento da penitência. (Dz. 3869)

Todavia, não é sempre necessário que este voto seja explícito como o é aquele dos catecúmenos, mas, quando o homem é vítima de ignorância invencível, Deus aceita também o voto implícito, chamado assim porque incluído na boa disposição de alma pela qual essa pessoa quer conformar sua vontade à vontade de Deus. (Dz. 3870)

Comentário: Vê-se claramente que o ensinamento da Igreja é em favor da ignorância invencível, e, ademais, Pio XII adverte que o dogma "fora da Igreja não há salvação" seja entendido no sentido em que a própria Igreja o entende, a saber, no sentido não-rigorista, como foi demonstrado até aqui, o que põe por terra o rigorismo de boa parte dos rigoristas feneítas que fazem justamente o contrário do que pedia explicitamente o Santo Ofício àquela altura. Estes então acabam por desobedecer não só diretamente esta diretriz particular do Santo Ofício, mas todo o Magistério milenar da Igreja, o qual veremos, é infalível quando anuncia uma verdade que fora repetida na Igreja ao longo dos séculos.


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COMENTÁRIOS FINAIS


Diante dos abundantes textos do Magistério da Igreja que afirmam, ora direta e explicitamente, ora indiretamente, a realidade do Batismo de desejo e da ignorância invencível, fica impossível a objeção de quem quer que seja que se diga um fiel católico, pois estaria faltando justamente com a fidelidade para com a Igreja. A rebeldia dos modernistas, que aplicam estes ensinamentos à revelia das recomendações dos Papas Pio IX e Pio XII, que advertem que tais conceitos não podem ser aplicados indiscriminadamente (como se abrissem as portas da salvação para todos, incluindo os que não a merecem e até a desprezam), é equiparável à rebeldia dos rigoristas que, no extremo oposto, fecham as portas da salvação aos que, padecendo de ignorância invencível, poderiam se salvar de algum modo [entenda-se: pelo Batismo de desejo]. Esquecem-se também estes obstinados rigoristas feneítas da infinita misericórdia de Deus. Eles, se colocando impetuosamente acima de Deus, pretendem decidir a quem Deus pode salvar, limitando o raio da misericórdia divina às suas próprias ideias de salvação. A estes recomendo que leiam novamente a parábola do Bom Samaritano.


Contudo, levado pela dureza de coração e por uma obstinada disposição herética, alguém ainda poderia argumentar que todos estes textos não são objeto de fé vinculativa aos católicos, mas apenas "opiniões teológicas", e que o Batismo de desejo e a ignorância invencível são "questões disputadas" da Igreja. Isto é obviamente falso, por dois motivos: o primeiro é que alguns dos documentos citados possuem o carisma da infalibilidade, e o segundo é que, mesmo se alguém duvidasse disso, restaria ainda a infalibilidade do Magistério Ordinário da Igreja quando repete verdades de sempre da Igreja, e esta repetição se vê nos vários textos supracitados. Vê-se, por exemplo, que a Carta Apostolicam Sedem do II Concílio de Latrão não apenas reafirma a doutrina do Batismo de desejo, como cita como embasamento teológico as teses de Santo Ambrósio (✝ 397) e Santo Agostinho (✝ 430). Sobre a infalibilidade do Magistério Ordinário, pode-se ainda confirmá-la citando a Carta Tuas libenter, de 1863, do Papa Pio IX:


"Nós desejamos persuadir-Nos de que eles não quiseram restringir a obrigação à qual os mestres e os escritores católicos estão de todo vinculados somente àquelas matérias que pelo juízo infalível da Igreja são propostas para serem cridas por todos como dogmas de fé. E estamos também persuadidos de que eles não quiseram declarar que a perfeita adesão às verdades reveladas, que reconheceram absolutamente necessária para conseguir um verdadeiro progresso das ciências e para combater os erros, possa ser obtida se a fé e o obséquio se voltam somente para os dogmas definidos expressamente pela Igreja. De fato, mesmo que se tratasse daquela submissão que se deve prestar com ato de fé divina, ela todavia não se deveria limitar àquelas coisas que foram definidas com decretos explícitos, que por meio do magistério ordinário de toda a Igreja difundida sobre a terra são transmitidas como divinamente reveladas e, portanto, por universal e constante consenso, pelos teólogos católicos são considerados como pertencentes à fé." (Dz. 2879)


Disso conclui-se, portanto, que o Batismo de desejo e a ignorância invencível são realidades que, por meio do Magistério da Igreja (seja ordinário ou extraordinário), foram ensinadas por universal e constante consenso, e por isso são consideradas como pertencentes à fé católica. Aquele que por pertinácia e malícia ensina o contrário destas verdades, é não menos que um difundidor de heresias ou mesmo um herege formal.


Observação: as referências do Denzinger foram retiradas da 40ª edição alemã de 2005.




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